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O Vale-Cultura pertence ao Brasil que tem menos desigualdade, com muito a conquistar, mas já podendo pensar “nas coisas do espírito”

Por Marta Suplicy

“Preciso estudar política e guerra para que meus filhos tenham liberdade para estudar matemática e filosofia. Meus filhos terão que estudar matemática, filosofia, comércio, agricultura para legarem aos seus filhos o direito de estudar pintura, poesia e música” (John Adams)

Quase 200 anos se passaram e grande parte do mundo ainda luta pela sobrevivência e não consegue se dedicar às “coisas do espírito”, mencionadas por John Adams (1735-1826). Entretanto, o Brasil, em consequência de políticas sociais desenvolvidas na última década que nos distanciaram da fome, nos permite sonhar com um país que tem a possibilidade de seus filhos receberem o alimento para a alma.

O programa Vale-Cultura, marca do governo Dilma Rousseff, inicia singrando mares não navegados e de vento em popa.

Depois do projeto de lei que propunha o Vale-Cultura, apresentado pelo ex-deputado José Múcio em 2006, muita água passou embaixo da ponte. Finalmente, com sua aprovação em 2013, o trabalhador brasileiro passa a ter a possibilidade de um cartão de crédito de acesso à cultura a partir da adesão da empresa empregadora.

O benefício foi estendido às empresas que declaram lucro presumido ou simples. Estas não recebem incentivo fiscal, mas os R$ 50 mensais que oferecem ao funcionário é livre de encargos. É um dinheiro que não entra como salário e, portanto, não é tributado, permitindo que escolas e salões de cabeleireiros, por exemplo, forneçam o benefício.

Já temos a adesão de todas as estatais e do setor bancário. O Banco do Brasil entrega hoje o primeiro cartão para seus funcionários. Empresas do porte da Vale e outras grandes aderem.
O mais surpreendente é que, em número, são as pequenas empresas que predominam e que nos descortinam um gigantesco ingresso de recursos na mão do povo a serem utilizados no consumo cultural.

Comemoramos há pouco os dez anos do consagrado programa Bolsa Família. Lembro-me de várias campanhas ao lado do presidente Lula nas quais ele reiterava o sonho do brasileiro de poder fazer três refeições ao dia.

Os que ficaram de fora do gigantesco número atendido pelo Bolsa Família foram inseridos por meio da Busca Ativa. O resultado são 22 milhões saindo da extrema pobreza. Gigantesco impacto na diminuição da mortalidade infantil, permanência na escola e empoderamento das mulheres, como mostram os dados. Além do forte impacto econômico nas regiões onde o Bolsa Família é distribuído. Quando fizemos o Renda Mínima em São Paulo, atingindo 12% da população, esses benefícios foram percebidos. Onde antes víamos a vendinha passamos a ter o mercadinho.

Neste momento, novo desafio, mais sutil, mas igualmente cidadão, se impõe: a possibilidade do alimento para a alma. Ele paira, ele voa, ele seduz, produz prazer enquanto qualifica e amplia a visão de mundo de quem entra em contato com a cultura.

O Vale-Cultura é esse alimento, na medida em que milhares de trabalhadores poderão realizar o sonho de entrar num museu ou numa livraria pela primeira vez e outros tantos realizarão o desejo de ir ao teatro –este que é o primeiro sonho em pesquisa realizada. Na verdade, nós pouco sabemos sobre os desejos da alma e quais serão seus alimentos.

Certamente seremos surpreendidos. E as mudanças de escolhas também ocorrerão, como aconteceu com os alimentos no Bolsa Família, que migraram do iogurte, até então inacessível, para outras opções. O impacto econômico se fará sentir em toda a cadeia produtiva da cultura.

Este programa, o Vale-Cultura, pertence ao Brasil que adentra o novo século com menos desigualdade, com muita coisa ainda para conquistar, mas já podendo pensar “no mais”. E o mais é o livro, a peça de teatro, o museu, a música. Este é o Brasil que dará o laço nas duas pontas que constroem a cidadania.

MARTA SUPLICY é ministra da Cultura. Senadora licenciada (PT-SP), foi prefeita de São Paulo (2001-2004) e ministra do Turismo (governo Lula).
Artigo publicado em jornal Folha de S. Paulo.

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